30.10.08

PAÍS EM inho

Não é possível suportar tanta água benta
tantos infernos tantos paraísos
tanta alma a salvar-se. Não é possível
tanto salvador vestido de absoluto.
Neste país do pouco. Neste país do muito.

Não é possível suportar tanta sebenta
tanta batina tanto sebo tanta cela:
Até Marx vestiram de sotaina
ó Antero: há um jesuíta um fanático um beato.
Neste país abstracto. Neste país abstracto.

Não é possível suportar tanta ideia cinzenta
tanto bolor de caserna e de convento
lajes lírios lágrimas. E os círios.
Tanto 1.º de Novenbro e tanto Império.
Neste país tão sério. Neste país tão sério.

Não haverá por aí outra ferramenta?
Não haverá ideias armas que não sejam
bentas? Um grande ponto de interrogação?
Um amor laico? Um revolucionário ateu
nas tintas para o inferno e para o céu?

Não é possível suportar tanta agonia
tanta nódoa de cera tanta mancha de sangue
tanto xaile a cheirar a sacristia.
(Que eu vi lá longe um homem crucificado
por este país fardado. Por este país fardado.)

E já não posso suportar tanta doença
tanta cebola a fazer de flor tanta mezinha
tanta Zita Santa Zita tanto rito
tanto guisado e catecismo. Tantas coisas em inho.
Neste país quietinho ó Pascoaes. Neste país quietinho.

É preciso (como diz o Torga) correntes de ar
pois falta ó Cesariny é verdade que falta
por aqui uma grande razão.
(Que não seja só uma palavra). Falta uma fúria.
Neste país de lamúria. Neste país de lamúria.

Um pouco mais de brasa. Ou se preferem
(como diria Mário Sá-Carneiro)
um pouco mais de golpe de asa. Pois falta ó Breton
um amor louco (laico e louco).
Neste país do pouco. Neste país do pouco.

Falta o porquê de António Sérgio. Falta o porquê.
Faltam concelhos realmente municipais.
Que não é possível suportar tanta gordura
tanta tristeza magra tanta rodilha tantos cestos.
Neste país de restos. Nestes país de restos.

Não é possível suportar tanto chicharro
tanta espinha na alma tanta côdea
tanta azeitona miudinha tanta malha
tanta mágoa apanhada uma a uma. (Que é tudo
o que se apanha. Neste país tão mudo. Neste país tão mudo).

Um pouco um pouco de ternura.
(Que não seja só uma canja de galinha).
Um pouco um pouco de clareza.
(Que não seja só o sol. Que não seja só o sul).
Neste país azul. Neste país azul.

Que não é possível suportar tanta mentira
tanta gente de esquerda a viver à direita
tanta apagada e vil baixeza tanta reza
tanto cochicho onde é preciso falar alto.
Neste país a salto. Neste país a salto.

Não é possível suportar tanto cotim
tanta manga de alpaca tanta canga
tanta ganga suada tanta lixívia
tanta lezíria tanto corno tanto chouriço.
Neste país castiço. Neste país castiço.

Não é possível tanto macho tanta fêmea
tanta faca e alguidar tanto magala
tanta saca tanta faca tanto fraque.
Neste país a saque. Neste país a saque.

Pois falta aqui o verbo ser. E sobra o ter.
Falta a sobra e sobra a falta. Ó proletários da tristeza
falta a ciência mais exacta: a poesia.
E há muito já que um poeta disse: É a Hora.
Neste país de aqui. Neste país de agora.
Manuel Alegre, Atlântico (1981)

2 comentários:

Paulo Feitais disse...

É a Hora, sim! Anita!
Neste país de pouco, porque temos a alma de tanto!

:)

Unknown disse...

Sejamo-la cada vez mais. ;)