13.12.08

O navio de espelhos


O navio de espelhos
não navega, cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Seus armadores não amam
a sua rota clara

(vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado 
é tudo o que transporta

E no mastro espelhado
uma espécie de porta

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
e o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo

Mário de Cesariny

3 comentários:

Paulo Feitais disse...

Vergílio... O Cersariny, ainda teremos, enquanto povo, que crescer muito para estarmos à sua altura, tal como estamos longe dum Almada Negreiros (esse não é, tal como Cesariny também não o é, amestrável como Pessoa, ou pelo menos como o Pessoa navegável com barcos de borracha, mas no fundo, no fundo, só lê Pessoa quem quiser naufragar, mas chega de desabafo).
E tu nunca escreves tarde. ;)
E este poema mexe muito comigo, cá bem por dentro. Esta versão youtubada rasga-me por dentro:http://www.youtube.com/watch?v=gbT8l8YyORo
E recebe um abraço, se não te importares de me estreitar assim com as entranhas à mostra... ;)
e por cá nos encontraremos...

:)

Paulo Feitais disse...

E a fotografia, Vergílio, não me esqueci dela, mas o remorso de não me referir a ela mordeu-me...
Para além de ser uma ilustração perfeita (o poema parece ter sido escrito para ela, mas o que é verdade é que nela se inscreve e por aí nos transporta para além da e-vidência, ou seja, somos puxados para dentro e levados a confrontar-nos com o que em nós de nós se vê no exterior circundante - não nos circunda, mas o nosso olhar é corcunda, só vê em redor, quando na verdade não somos o centro de nada).
E não devia ter enclausurado aquilo entre parêntesis, mas enfim...
Eu lembro-me do teu comentário a uma fotografia minha. Eu penso que vemos a coisa da mesma forma. Embora continue a achar que por vezes estamos sós no mundo. Comigo acontece-me isso quando fotografo. E por vezes essa soidão, essa soidade, dói-me profundamente. A minha alma parte para bem dentro do imenso das coisas, mas eu fico no cais à espera. E por vezes esqueço-me de me lá ir buscar.
Mas enfim...
Mais um abraço e um obrigado pelo gigantismo do teu olhar.

:)

rmf disse...

Ando, há algum tempo a esta parte, a amealhar poemas, livros e mais poemas de... Mário de Cesariny. Entrevistas, biografias, documentários (aconselho vivamente a Autografia, último documentário) entre outros recortes e breves passagens. Tenho, por força sei lá do quê, memorizados inúmeros, inúmeros poemas de Cesariny. Niguém me obrigou. Nele dele nem doutros. Estou a chegar a um ponto em que era capaz de iniciar uma viagem de poemas ao longo de horas, fossem ou tivessem paciência para me ouvir. Em julho, em Faro, apresentarei em Faro um trabalho que está bem andado... bem encaminhado... Palavras de Cesariny, de Almada, Al Berto, Vergílio Ferreira, de Beckett estão na base da suposta coisa, mais... música e multimédia... uma confusão...

Nada acrecento ao que dizes sobre Cesariny. Nunca nos esqueçamos, que Cesariny era pintor. Dessa franja da Surrealidade opressivamente apagada das orlas da criação pelo regime da época. André Breton, António Maria Lisboa, Ricarte Dácio... sei lá... por aí.

Já perto do fim, Miguel (jovem realizador) pergunta a Cesariny: Ainda escreve? Ao que este responde: P'ra quê? A quem?

Já perto do fim, Cesariny confessa: Agora vou a uns sítios muito elegantes, onde as pessoas me ouvem, eu estou lá em cima, ela lá baixo aplaudem, aplaudem! EH! EH!! Ba... ba... ba... e depois deixam-me ir embora sózinho p'ra casa...

Esta dói-me! Rebenta-me as entranhas como tu dizes...

Estamos sós Paulo. Não só nós. Todos. É condição do ser humano. Não é uma vertente. Cada um de nós escolhe o que lhe é mais conveniente para. Somente para. Vamos às compras, desejamos estar sós. Consumimos estapafurdices, sentimo-nos iludidos. Estamos sós, desejamos o nosso imo mais profundo. Lemos, escrevemos, ouvimos música, cantamos, fotografamos momentos instantes, momentos paisagem, eternizados estáticos elevados à recordação. Confundimos e confundimo-nos com o real. O Real é muito vida, é muito tudo, é muito nada. Amamos, somos amados, odiamos, somos odiados.

Miguel: Pode-se morrer de amor?
Cesariny: Até os animais. sobretudo os animais... por não têm forma de se distrair...

Ó Paulo... estou "desentranhado" :)

P'ra que é que eu fui postar Cesariny?
A culpa é tua amigo! :)
Desde que ando por estas paragens de autor/comentador, espaços virtuais etc... que sempre prometi a mim mesmo... Vê lá o que vais fazer rapaz! Vê lá que isso não é para ser escarrapachado só por gozo próprio de dizeres que gostas de. Que o queres ver em. Mas hoje, ontem... percebi que era a altura certa. Tudo levou a crer (querer) acreditar que era o momento certo, a altura ideal... sei lá... convergência do pensamento. E com feeback! Esteja onde estiver, ele há-de perceber a razão de o ter publicado.

Descansado o Cesariny, falas-me também de Almada. Almada é muito mais... é muito mais para além demais infinito!
"A cena do ódio", acho que é o supremo desafio para quem gosta de ter esse tipos de desafios... Não é impossível. E tenho a certeza de que passado esse dia, me vou sentir muito melhor, como que própriamente exorcisado pelas palavras feito minhas, como muitas outras que passo a vida a dizer, a representar.

É engraçado... não sei de cor nada, digo nada do que escrevo. E ainda bem! :)

Que mais posso partilhar contigo, convosco.
Partilho, partilhamos esta nossa breve troca de ideias feito palavras dizendo, desejando - para começar - um santo Natal para todos vós (embora não acredite em santos) e em especial para ti Paulo, que eu sei, que tudo o que procuras é para ti o grande mistério! A razão pela qual. E é por isso que envio deste lado um enorme abraço com a certeza de que por ti será recebido!

Amigo, Feliz Natal e um próspero Ano Novo!
E já agora, que o 2009 nos traga tudo o que o 2008 se esqueceu de entregar! :)

Obrigado Paulo.