14.3.09

Ibéria

«I
Flor dos povos! ó tu que inda te embalas,
E inda em botão, aos ventos do futuro!
Que tens por vasos e jardins e salas
Toda a vasta extensão do tempo escuro!
E frontes gloriosas a adorná-las,
A fronte da história, o grande auguro!
Lírio que sais do seio à humanidade
Como filha melhor - Fraternidade!

Deixa que escreva aqui teu nome todo,
E já daqui aspire teu perfume!
E, arredando coas mãos o frio lodo
Do presente, me aqueça a esse teu lume!

Deixa beijar-te em sonho, e deste modo
Trazer-te unida ao seio, que consume
Esta ânsia ardente de destino novo,
E este fogo roubado ao seio do povo!

Porque te vemos só quando sonhamos...
E, irmã! só nos sorris em nosso sono...
E, a dormir, doce amiga, te beijamos!
Tu - só em nossas almas - tens teu trono
Ainda! mas, sem ver-te, te adoramos,
E, como um cão fiel segue o seu dono,
Trazemos ante o olhar tua lembrança,
E caminhamos cheios de confiança!

Fraternidade! esta palavra é suave,
Como antegosto de melhor destino!
Como a onda de um Ganges que nos lave!
E como a posse de um penhor divino!
Como o voo sereno de uma ave
Que, sendo apenas ponto pequenino,
Entanto, faz, transpondo ao longe um monte,
Sonhar, com melhor céu e outro horizonte!

O grande céu! o céu da humanidade!
Onde os povos serão constelações,
E, destilando a luz da liberdade,
Serão astros e estrelas as nações!
Onde há-de o grande laço da igualdade
Reunir a vontade e os corações!
Cobrindo-os, a dormir, os mesmos céus,
Terão todos também o mesmo Deus.

Não vejo outro Evangelho de oiro escrito
Dentro no homem, - nem sei que outro areal,
Outro cabo, outro monte de granito,
Do grande navegar surja afinal!
Guiados pelo instinto do infinito
É para lá que os povos - nau real! -
Hão-de a proa virar lá quando um dia
Marearem pela bússola harmonia!

II

Hão-de então, como irmãos, reconhecer-se
Os amigos - há tanto tempo ausentes!
Hão então (caso novo e estranho!) ver-se
Face a face as nações, sem que dementes
As entranhas se rasguem! e há-de ler-se
Um protocolo, em letras de oiro, ingentes,
Escrito, sem emenda e sem errata,
Por mãos do amor - o grande diplomata,

III

Ele é quem concilia as diferenças,
Quem nos concílios há-de erguer a voz,
Tirando nova ideia e novas crenças
Das esfriadas cinzas dos avós!
E, sem trabalhos, e sem dores imensas,
E sem rios de sangue e pranto após,
Rasgando o ventre à velha liberdade
Sairá à luz a jovem igualdade!

É doce ver assim, à luz da esperança,
Pelo futuro dentro, as coisas belas...
Prever do céu humano essa mudança,
Que em sóis converte as mínimas estrelas!
Do passado infeliz eis a vingança!
E dos mortos as faces amarelas,
Corando de ventura e de alegria,
Hão-de surgir, enfim, à luz do dia!

IV

E nós também, também comungaremos
Na grande comunhão das novas gentes:
Também os nossos braços ergueremos
- Braços livres de jovens impacientes -
E o cinto deste Velho quebraremos,
De aonde a espada e o ceptro estão pendentes,
(Já tão gastos!) lançando-os à ribeira...
Para o coroar de palmas e oliveira!

Espanha - irmã! que boda alegre a nossa!
Como hão-de então teus seios palpitar!
Que ribeira de lágrimas tão grossa
Teu branco véu de noiva há-de estancar!
Como há-de parecer pequena poça
Para os banhos, então, o grande mar!
E entornar-nos volúpia nos desejos
O misto de ódio antigo e novos beijos!

Mas tu 'stás presa!... e nós.. 'stamos dementes!
Separa-nos o abismo! e os teus algozes...
A cruz de Inácio... e as garras inclementes
Dos leões orgulhosos e ferozes...
E a estupidez do povo dos valentes,
Destes pardais de atroadoras vozes...
Entre nós nos cavaram oceanos...
Sejam-lhe ponte os corpos dos tiranos!

Porque beijas teus ferros, pobre louca,
E cuidas 'star beijando coisa santa?
E, tendo em tuas mãos coisa tão pouca,
Tão ténue como a capa de uma santa,
Pensas avassalar a terra amouca,
E te ergues com vaidade e glória tanta?
Oh! tu, cuidando os orbes abraçar,
Só ruínas abraças - Trono e Altar!

Lembre-te a voz do Cid! a atroadora
Voz que se ouvia ao longe nos combatentes!
Porque tu estás feita salmeadora
No coro das igrejas - porque bates
No peito, em vez de erguer dominadora
A tua mão em meio de combates.
E livre e bela, ó Espanha, olhar os céus,
Procurando por lá teu novo Deus!

V

Como nos amaremos, doce amiga!
Como então amaremos! que noivado
O nosso não será!... Não tem a espiga
No campo cor melhor, nem mais doirado
Esplendor, do que tu, bela inimiga.
Hás-de ver a ventura... quando o estrado
Do leito nupcial for Liberdade,
E for dossel o céu - Fraternidade.»
Antero de Quental, Raios de Extinta Luz

2 comentários:

Paulo Alves disse...

Solemnia Verba

Disse ao meu coração: Olha por Quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos...

Pó e cinza, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz a Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do pensar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se isto é vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.

Antero de Quental

Unknown disse...

Ámen! :)