25.3.09

A Nov'Ilha do Mar

«Ornada de nastros
fareja a espuma,
olhos chamejantes, ante o mar.
(Na areia há poças de céu e nuvens,
nódoas de negras mariposas.)
A novilha baixa a cerviz, balindo,
mas não se afasta: fareja o hálito do Pai
e à vaga se entrega (para a morte, para a vida,
não sabe). Sopra o vento de Dionisos rubro
e em velo de ouro seu corpo se transmuda.

Fogem delfins. Alastram-se algas,
seres híbridos de progênie incerta.
A novilha flutua em luminoso torvelinho
às fitas de ouro enlaçada;
seus grandes olhos descem às profundezas
e vê as quatro portas do tenebroso Mar.
Borbulha o abissal; deuses se forjam e o tempo,
armam-se auroras de capacetes cintilantes
e sóis se diluem; do arcano do sono
nutrem-se sonhos e ao germinar infuso
treva e luz são arrancadas.

Vê os nomes primordiais
que às coisas conferem vida e esplendor:
onde, sem nenhum apoio, finalmente está,
onde, sem ontem e amanhã, finalmente está
e fulgura sem que nada a ilumine.
A luz dali não vem, pois é a luz em seu primeiro vagido.

Nome não tem e a tudo nomeia
nas entrançadas raízes das coisas por nascer.
Não é, não existe, simplesmente está no Incontaminado
e fora do tempo, porque o tempo dele se origina.
A um suspiro seu, a cadeia da vida se propaga.

Diz a Palavra, desviando o olhar: A vida
é o ponto escolhido para o triunfo célere de um deus.
Cada pedra, cada homem ou árvore
vela e desvela uma face rápida e divina.
(Os deuses espreitam a vida com olhos temerosos.)
Porque a vida não é, a vida está.


nada ia no barco
e tudo era o Mar»
Dora Ferreira da Silva, Talhamar

«(...) o disse João - só na terceira o Espírito virá pleno e, dissolvendo o fenómeno, dará a todos aquela santidade, aquele perder-se no Inominado, sem que perda haja, que só foi até hoje o de raros - e talvez sobretudo o daqueles que anónimos a Igreja celebra no dia que, em termos do porvir, mais fundo vai - o de Todos os Santos. Reino de Deus sem rei, porque sem súbditos; Império sem número algum, porque sem memória de que lhe antecederam e sem nenhum que venha a suceder-lhe; Sociedade sem classes, porque soltos os homens da política que os distingue; e da economia que os separa; da morte que a todo vivo a vida empalidece. Idade que virá e de que foi profeta o Cristo de João, ou o Abade Joaquim de Fiori, que Dante cita; Idade que fugazmente foi povo em Portugal e é Povo nas Ilhas atlânticas e é Povo no Brasil; naquele Portugal de Pessoa ortónimo ou heterónimo que em Dora vive, como outra ressurrecta ânfora, toda fremente de Mar Universal, mesmo que de lágrimas feito, e naquele Brasil, futuro do passado, que em Dora tão plenamente também vive, apesar de São Paulo - afinal tão mártir de uma técnica que, por ainda, como em todo o mundo, tateando seus passos, opressora parece, quando afinal em si traz mensagem plena de liberdade. Aquela liberdade por que ansiaram os gregos - e lhes foi apenas Democracia e Democracia de raros, como aliás o têm sido todas as Democracias; a liberdade que possuíram, depois, os Santos em sua Comunhão; mas Liberdade que só se afirmará, não sendo por ter substituído todo o ortodoxo e todo o heterodoxo pelo Paradoxo que tão raros ousaram e por ele morreram; mas que por ele ressurgirão num outro terceiro dia, em que mais escola alguma matará a Criança Eterna que todos deveríamos ser e se sentarão, como nós todos, se o ousarmos ser já, à mão direita de um Deus que não terá mais nenhum culto, se não o que a si próprio, por o ser, a Divindade se presta. Ancorada, como parece, na primeira Idade, a ligeira galera de cuja amurada Dora transparece as águas, voga ela à Terceira e no Atlântico de África e Brasil se transformará na Barca divina dos mais antigos que os gregos, aqueles que, fechando o ciclo, serão os primeiros dos últimos. Simultâneos primeiros e últimos, no único tempo que verdadeiramente importa: o que é contemporâneo do eterno
Agostinho da Silva, Carta de Agostinho da Silva sobre Talhamar (1988)

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